Machado De Assis: Confissões de uma Viúva

Confissões de Uma Viúva, de Machado de Assis
 
Fonte:
 
ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro : Nova Aguilar 1994. v. II.
 
Texto proveniente de:
 
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro <https://www.bibvirt.futuro.usp.br> A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
 
Permitido o uso apenas para fins educacionais.
 
Texto-base digitalizado por:
 
Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística
 
(https://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/literat.html)
 
Este material pode ser redistribuído livremente, desde que não seja alterado, e que as informações acima sejam mantidas. Para maiores informações, escreva para
 
<bibvirt@futuro.usp.br>.
 
Estamos em busca de patrocinadores e voluntários para nos ajudar a manter este projeto.
 
Se você quer ajudar de alguma forma, mande um e-mail para <bibvirt@futuro.usp.br> e saiba como isso é possível.
 
 
 
Confissões de uma Viúva
 
 
 
Capítulo Primeiro
 
Há dois anos tomei uma resolução singular: fui residir em Petrópolis em
 
pleno mês de junho. Esta resolução abriu largo campo às conjecturas. Tu
 
mesma nas cartas que me escreveste para aqui, deitaste o espírito a adivinhar
 
e figuraste mil razões, cada qual mais absurda.
 
A estas cartas, em que a tua solicitude traía a um tempo dous sentimentos, a
 
afeição da amiga e a curiosidade de mulher, a essas cartas não respondi e
 
nem podia responder. Não era oportuno abrir-te o meu coração nem desfiar-
 
te a série de motivos que me arredou da corte, onde as óperas do Teatro
 
Lírico, as tuas partidas e os serões familiares do primo Barros deviam
 
distrair-me da recente viuvez.
 
Esta circunstância de viuvez recente acreditavam muitos que fosse o único
 
motivo da minha fuga. Era a versão menos equívoca. Deixei-a passar como
 
todas as outras e conservei-me em Petrópolis.
 
Logo no verão seguinte vieste com teu marido para cá, disposta a não voltar
 
para a corte sem levar o segredo que eu teimava em não revelar. A palavra
 
não fez mais do que a carta. Fui discreta como um túmulo, indecifrável
 
como a Esfinge. Depuseste as armas e partiste. Desde então não me trataste
 
senão por tua Esfinge.
 
Era Esfinge, era. E se, como Édipo, tivesses respondido ao meu enigma a
 
palavra "homem", descobririas o meu segredo, e desfarias o meu encanto.
 
Mas não antecipemos os acontecimentos, como se diz nos romances.
 
É tempo de contar-te este episódio da minha vida.
 
Quero fazê-lo por cartas e não por boca. Talvez corasse de ti. Deste modo o
 
coração abre-se melhor e a vergonha não vem tolher a palavra nos lábios.
 
Repara que eu não falo em lágrimas, o que é um sintoma de que a paz voltou
 
ao meu espírito.
 
As minhas cartas irão de oito em oito dias, de maneira que a narrativa pode
 
fazer-te o efeito de um folhetim de periódico semanal.
 
Dou-te a minha palavra de que hás de gostar e aprender.
 
E oito dias depois da minha última carta irei abraçar-te, beijar-te, agradecer-
 
te. Tenho necessidade de viver. Estes dous anos são nulos na conta de minha
 
vida: foram dous anos de tédio, de desespero íntimo, de orgulho abatido, de
 
amor abafado.
 
Lia, é verdade. Mas só o tempo, a ausência, a idéia do meu coração
 
enganado, da minha dignidade ofendida, puderam trazer-me a calma
 
necessária, a calma de hoje.
 
E sabe que não ganhei só isto. Ganhei conhecer um homem cujo retrato
 
trago no espírito e que me parece singularmente parecido com outros muitos.
 
Já não é pouco; e a lição há de servir-me, como a ti, como às nossas amigas
 
inexperientes. Mostra-lhes estas cartas; são folhas de um roteiro que se eu
 
tivera antes, talvez, não houvesse perdido uma ilusão e dous anos de vida.
 
Devo terminar esta. É o prefácio do meu romance, estudo, conto, o que
 
quiseres. Não questiono sobre a designação, nem consulto para isso os
 
mestres d'arte.
 
Estudo ou romance, isto é simplesmente um livro de verdades, um episódio
 
singelamente contado, na confabulação íntima dos espíritos, na plena
 
confiança de dous corações que se estimam e se merecem.
 
Adeus.
 
 
 
Capítulo II
 
Era no tempo de meu marido.
 
A Corte estava então animada e não tinha esta cruel monotonia que eu sinto
 
aqui através das tuas cartas e dos jornais de que sou assinante.
 
Minha casa era um ponto de reunião de alguns rapazes conversados e
 
algumas moças elegantes. Eu, rainha eleita pelo voto universal... de minha
 
casa, presidia aos serões familiares. Fora de casa, tínhamos os teatros
 
animados, as partidas das amigas, mil outras distrações que davam à minha
 
vida certas alegrias exteriores em falta das íntimas, que são as únicas
 
verdadeiras e fecundas.
 
Se eu não era feliz, vivia alegre.
 
E aqui vai o começo do meu romance.
 
Um dia meu marido pediu-me como obséquio especial que eu não fosse à
 
noite ao Teatro Lírico. Dizia ele que não podia acompanhar-me por ser
 
véspera de saída de paquete.
 
Era razoável o pedido.
 
Não sei, porém, que espírito mau sussurrou-me ao ouvido e eu respondi
 
peremptoriamente que havia de ir ao teatro, e com ele. Insistiu no pedido,
 
insisti na recusa. Pouco bastou para que eu julgasse a minha honra
 
empenhada naquilo. Hoje vejo que era a minha vaidade ou o meu destino.
 
Eu tinha certa superioridade sobre o espírito de meu marido. O meu tom
 
imperioso não admitia recusa; meu marido cedeu a despeito de tudo, e à
 
noite fomos ao Teatro Lírico.
 
Havia pouca gente e os cantores estavam endefluxados. No fim do primeiro
 
ato meu marido, com um sorriso vingativo, disse-me estas palavras rindo-se:
 
- Estimei isto.
 
- Isto? perguntei eu franzindo a testa.
 
- Este espetáculo deplorável. Fizeste da vinda hoje ao teatro um capítulo de
 
honra; estimo ver que o espetáculo não correspondeu à tua expectativa.
 
- Pelo contrário, acho magnífico.
 
- Está bom.
 
Deves compreender que eu tinha interesse em me não dar por vencida; mas
 
acreditas facilmente que no fundo eu estava perfeitamente aborrecida do
 
espetáculo e da noite.
 
Meu marido, que não ousava retorquir, calou-se com ar de vencido, e
 
adiantando-se um pouco à frente do camarote percorreu com binóculo as
 
linhas dos poucos camarotes fronteiros em que havia gente.
 
Eu recuei a minha cadeira, e, encostada à divisão do camarote, olhava para o
 
corredor vendo a gente que passava.
 
No corredor, exatamente em frente à porta do nosso camarote, estava um
 
sujeito encostado, fumando e com os olhos fitos em mim. Não reparei ao
 
princípio, mas a insistência obrigou-me a isso. Olhei para ele a ver se era
 
algum conhecido nosso que esperava ser descoberto a fim de vir então
 
cumprimentar-nos. A intimidade podia explicar este brinco. Mas não
 
conheci.
 
Depois de alguns segundos, vendo que ele não tirava os olhos de mim,
 
desviei os meus e cravei-os no pano da boca e na platéia.
 
Meu marido, tendo acabado o exame dos camarotes, deu-me o binóculo e
 
sentou-se ao fundo diante de mim.
 
Trocamos algumas palavras.
 
No fim de um quarto de hora a orquestra começou os prelúdios para o
 
segundo ato. Levantei-me, meu marido aproximou a cadeira para a frente, e
 
nesse ínterim lancei um olhar furtivo para o corredor.
 
O homem estava lá.
 
Disse a meu marido que fechasse a porta.
 
Começou o segundo ato.
 
Então, por um espírito de curiosidade, procurei ver se o meu observador
 
entrava para as cadeiras. Queria conhecê-lo melhor no meio da multidão.
 
Mas, ou porque não entrasse, ou porque eu não tivesse reparado bem, o que
 
é certo é que o não vi.
 
Correu o segundo ato mais aborrecido do que o primeiro.
 
No intervalo recuei de novo a cadeira, e meu marido, a pretexto de que fazia
 
calor, abriu a porta do camarote.
 
Lancei um olhar para o corredor.
 
Não vi ninguém; mas daí a poucos minutos chegou o mesmo indivíduo,
 
colocando-se no mesmo lugar, e fitou em mim os mesmos olhos
 
impertinentes.
 
Somos todas vaidosas da nossa beleza e desejamos que o mundo inteiro nos
 
admire. É por isso que muitas vezes temos a indiscrição de admirar a corte
 
mais ou menos arriscada de um homem. Há, porém, uma maneira de fazê-la
 
que nos irrita e nos assusta; irrita-nos por impertinente, assusta-nos por
 
perigosa. É o que se dava naquele caso.
 
O meu admirador insistia de modo tal que me levava a um dilema: ou ele era
 
vítima de uma paixão louca, ou possuía a audácia mais desfaçada. Em
 
qualquer dos casos não era conveniente que eu animasse as suas adorações.
 
Fiz estas reflexões enquanto decorria o tempo do intervalo. Ia começar o
 
terceiro ato. Esperei que o mudo perseguidor se retirasse e disse a meu
 
marido:
 
- Vamos?
 
- Ah!
 
- Tenho sono simplesmente; mas o espetáculo está magnífico.
 
Meu marido ousou exprimir um sofisma.
 
- Se está magnífico como te faz sono?
 
Não lhe dei resposta.
 
Saímos.
 
No corredor encontramos a família do Azevedo que voltava de uma visita a
 
um camarote conhecido. Demorei-me um pouco para abraçar as senhoras.
 
Disse-lhes que tinha uma dor de cabeça e que me retirava por isso.
 
Chegamos à porta da Rua dos Ciganos.
 
Aí esperei o carro por alguns minutos.
 
Quem me havia de aparecer ali, encostado ao portal fronteiro?
 
O misterioso.
 
Enraiveci.
 
Cobri o rosto o mais que pude com o meu capuz e esperei o carro, que
 
chegou logo.
 
O misterioso lá ficou tão insensível e tão mudo como o portal a que estava
 
encostado.
 
Durante a viagem a idéia daquele incidente não me saiu da cabeça. Fui
 
despertada na minha distração quando o carro parou à porta da casa, em
 
Mata-cavalos.
 
Fiquei envergonhada de mim mesma e decidi não pensar mais no que se
 
havia passado.
 
Mas acreditarás tu, Carlota? Dormi meia hora mais tarde do que supunha,
 
tanto a minha imaginação teimava em reproduzir o corredor, o portal, e o
 
meu admirador platônico.
 
No dia seguinte pensei menos. No fim de oito dias tinha-me varrido do
 
espírito aquela cena, e eu dava graças a Deus por haver-me salvo de uma
 
preocupação que podia ser-me fatal.
 
Quis acompanhar o auxílio divino, resolvendo não ir ao teatro durante algum
 
tempo.
 
Sujeitei-me à vida íntima e limitei-me à distração das reuniões à noite.
 
Entretanto estava próximo o dia dos anos da tua filhinha. Lembrei-me que
 
para tomar parte na tua festa de família, tinha começado um mês antes um
 
trabalhozinho. Cumpria rematá-lo.
 
Uma quinta-feira de manhã mandei vir os preparos da obra e ia continuá-la,
 
quando descobri dentre uma meada de lã um invólucro azul fechando uma
 
carta.
 
Estranhei aquilo. A carta não tinha indicação. Estava colada e parecia
 
esperar que a abrisse a pessoa a quem era endereçada. Quem seria? Seria
 
meu marido? Acostumada a abrir todas as cartas que lhe eram dirigidas, não
 
hesitei. Rompi o invólucro e descobri o papel cor-de-rosa que vinha dentro.
 
Dizia a carta:
 
Não se surpreenda, Eugênia; este meio é o do desespero, este desespero é o do amor. Amo-a e muito. Até certo tempo procurei fugir-lhe e abafar este sentimento; não posso mais. Não me viu no Teatro Lírico? Era uma força oculta e interior que me levava ali. Desde então não a vi mais. Quando a verei? Não a veja embora, paciência; mas que o seu coração palpite por mim um minuto em cada dia, é quanto basta a um amor que não busca nem as venturas do gozo, nem as galas da publicidade. Se a ofendo, perdoe um pecador; se pode amar-me, faça-me um deus.
 
Li esta carta com a mão trêmula e os olhos anuviados; e ainda durante
 
alguns minutos depois não sabia o que era de mim.
 
Cruzavam-se e confundiam-se mil idéias na minha cabeça, como estes
 
pássaros negros que perpassam em bandos no céu nas horas próximas da
 
tempestade.
 
Seria o amor que movera a mão daquele incógnito? Seria simplesmente
 
aquilo um meio do sedutor calculado? Eu lançava um olhar vago em
 
derredor e temia ver entrar meu marido.
 
Tinha o papel diante de mim e aquelas letras misteriosas pareciam-me outros
 
tantos olhos de uma serpente infernal. Com um movimento nervoso e
 
involuntário amarrotei a carta nas mãos.
 
Se Eva tivesse feito outro tanto à cabeça da serpente que a tentava não
 
houvera pecado. Eu não podia estar certa do mesmo resultado, porque esta
 
que me aparecia ali e cuja cabeça eu esmagava, podia, como a hidra de
 
Lerna, brotar muitas outras cabeças.
 
Não cuides que eu fazia então esta dupla evocação bíblica e pagã. Naquele
 
momento, não refletia, desvairava; só muito tempo depois pude ligar duas
 
idéias.
 
Dous sentimentos atuavam em mim: primeiramente, uma espécie de terror
 
que infundia o abismo, abismo profundo que eu pressentia atrás daquela
 
carta; depois uma vergonha amarga de ver que eu não estava tão alta na
 
consideração daquele desconhecido, que pudesse demovê-lo do meio que
 
empregou.
 
Quando o meu espírito se acalmou é que eu pude fazer a reflexão que devia
 
acudir-me desde o princípio. Quem poria ali aquela carta? Meu primeiro
 
movimento foi para chamar todos os meus fâmulos. Mas deteve-me logo a
 
idéia de que por uma simples interrogação nada poderia colher e ficava
 
divulgado o achado da carta. De que valia isto?
 
Não chamei ninguém.
 
Entretanto, dizia eu comigo, a empresa foi audaz; podia falhar a cada
 
trâmite; que móvel impeliu àquele homem a dar este passo? Seria amor ou
 
sedução?
 
Voltando a este dilema, meu espírito, apesar dos perigos, comprazia-se em
 
aceitar a primeira hipótese: era a que respeitava a minha consideração de
 
mulher casada e a minha vaidade de mulher formosa.
 
Quis adivinhar lendo a carta de novo: li-a, não uma, mas duas, três, cinco
 
vezes.
 
Uma curiosidade indiscreta prendia-me àquele papel. Fiz um esforço e
 
resolvi aniquilá-lo, protestando que ao segundo caso nenhum escravo ou
 
criado me ficaria em casa.
 
Atravessei a sala com o papel na mão, dirigi-me para o meu gabinete, onde
 
acendi uma vela e queimei aquela carta que me queimava as mãos e a
 
cabeça.
 
Quando a última faísca do papel enegreceu e voou, senti passos atrás de
 
mim. Era meu marido.
 
Tive um movimento espontâneo: atirei-me em seus braços.
 
Ele abraçou-me com certo espanto.
 
E quando o meu abraço se prolongava senti que ele me repelia com brandura
 
dizendo-me:
 
- Está bom, olha que me afogas!
 
Recuei.
 
Estristeceu-me ver aquele homem, que podia e devia salvar-me, não
 
compreender, por instinto ao menos, que se eu o abraçava tão estreitamente
 
era como se me agarrasse à idéia do dever.
 
Mas este sentimento que me apertava o coração passou um momento para
 
dar lugar a um sentimento de medo. As cinzas da carta ainda estavam no
 
chão, a vela conservava-se acesa em pleno dia; era bastante para que ele me
 
interrogasse.
 
Nem por curiosidade o fez!
 
Deu dous passos no gabinete e saiu.
 
Senti uma lágrima rolar-me pela face. Não era a primeira lágrima de
 
amargura. Seria a primeira advertência do pecado?
 
 
 
Capítulo III
 
Decorreu um mês.
 
Não houve durante esse tempo mudança alguma em casa. Nenhuma carta
 
apareceu mais, e a minha vigilância, que era extrema, tornou-se de todo
 
inútil.
 
Não me podia esquecer o incidente da carta. Se fosse só isto! As primeiras
 
palavras voltavam-me incessantemente à memória; depois, as outras, as
 
outras, todas. Eu tinha a carta de cor!
 
Lembras-te? Uma das minhas vaidades era ter a memória feliz. Até neste
 
dote era castigada. Aquelas palavras atordoavam-me, faziam-me arder a
 
cabeça. Por quê? Ah! Carlota! é que eu achava nelas um encanto indefinível,
 
encanto doloroso, porque era acompanhado de um remorso, mas encanto de
 
que eu me não podia libertar.
 
Não era o coração que se empenhava, era a imaginação. A imaginação
 
perdia-me; a luta do dever e da imaginação é cruel e perigosa para os
 
espíritos fracos. Eu era fraca. O mistério fascinava a minha fantasia.
 
Enfim os dias e as diversões puderam desviar o meu espírito daquele
 
pensamento único. No fim de um mês, se eu não tinha esquecido
 
inteiramente o misterioso e a carta dele, estava, todavia, bastante calma para
 
rir de mim e dos meus temores.
 
Na noite de uma quinta-feira, achavam-se algumas pessoas em minha casa, e
 
muitas das minhas amigas, menos tu. Meu marido não tinha voltado, e a
 
ausência dele não era notada nem sentida, visto que, apesar de franco
 
cavalheiro como era, não tinha o dom particular de um conviva para tais
 
reuniões.
 
Tinha-se cantado, tocado, conversado; reinava em todos a mais franca e
 
expansiva alegria; o tio da Amélia Azevedo fazia rir a todos com as suas
 
excentricidades; a Amélia arrebatava bravos a todos com as notas da sua
 
garganta celeste; estávamos em um intervalo, esperando a hora do chá.
 
Anunciou-se meu marido.
 
Não vinha só. Vinha ao lado dele um homem alto, magro, elegante. Não
 
pude conhecê-lo. Meu marido adiantou-se, e no meio do silêncio geral veio
 
apresentar-mo.
 
Ouvi de meu marido que o nosso conviva chamava-se Emílio.***
 
Fixei nele um olhar e retive um grito.
 
Era ele!
 
O meu grito foi substituído por um gesto de surpresa. Ninguém percebeu.
 
Ele pareceu perceber menos que ninguém. Tinha os olhos fixos em mim, e
 
com um gesto gracioso dirigiu-me algumas palavras de lisonjeira cortesia.
 
Respondi como pude.
 
Seguiram-se as apresentações, e durante dez minutos houve um silêncio de
 
acanhamento em todos.
 
Os olhos voltavam-se todos para o recém-chegado. Eu também voltei os
 
meus e pude reparar naquela figura em que tudo estava disposto para atrair
 
as atenções: cabeça formosa e altiva, olhar profundo e magnético, maneiras
 
elegantes e delicadas, certo ar distinto e próprio que fazia contraste com o ar
 
afetado e prosaicamente medido dos outros rapazes.
 
Este exame de minha parte foi rápido. Eu não podia, nem me convinha
 
encontrar o olhar de Emílio. Tornei a abaixar os olhos e esperei ansiosa que
 
a conversação voltasse de novo ao seu curso.
 
Meu marido encarregou-se de dar o tom. Infelizmente era ainda o novo
 
conviva o motivo da conversa geral.
 
Soubemos então que Emílio era um provinciano filho de pais opulentos, que
 
recebera uma esmerada educação na Europa, onde não houve um só recanto
 
que não visitasse.
 
Voltara há pouco tempo ao Brasil, e antes de ir para a província tinha
 
determinado passar algum tempo no Rio de Janeiro.
 
Foi tudo quanto soubemos. Vieram as mil perguntas sobre as viagens de
 
Emílio, e este com a mais amável solicitude, satisfazia a curiosidade geral.
 
Só eu não era curiosa. É que não podia articular palavra. Pedia interiormente
 
a explicação deste romance misterioso, começado em um corredor do teatro,
 
continuado em uma carta anônima e na apresentação em minha casa por
 
intermédio do meu próprio marido.
 
De quando em quando levantava os olhos para Emílio e achava-o calmo e
 
frio, respondendo polidamente às interrogações dos outros e narrando ele
 
próprio, com uma graça modesta e natural, alguma das suas aventuras de
 
viagem.
 
Ocorreu-me uma idéia. Seria realmente ele o misterioso do teatro e da carta?
 
Pareceu-me ao princípio que sim, mas eu podia ter-me enganado; eu não
 
tinha as feições do outro bem presentes à memória; parecia-me que as duas
 
criaturas eram uma e a mesma; mas não podia explicar-se o engano por uma
 
semelhança miraculosa?
 
De reflexão em reflexão, foi-me correndo o tempo, e eu assistia à conversa
 
de todos como se não estivesse presente. Veio a hora do chá. Depois cantou-
 
se e tocou-se ainda. Emílio ouvia tudo com atenção religiosa e mostrava-se
 
tão apreciador do gosto como era conversador discreto e pertinente.
 
No fim da noite tinha cativado a todos. Meu marido, sobretudo, estava
 
radiante. Via-se que ele se considerava feliz por ter feito a descoberta de
 
mais um amigo para si e um companheiro para as nossas reuniões de família.
 
Emílio saiu prometendo voltar algumas vezes.
 
Quando eu me achei a sós com meu marido, perguntei-lhe:
 
- Donde conheces este homem?
 
- É uma pérola, não é? Foi-me apresentado no escritório há dias; simpatizei
 
logo; parece ser dotado de boa alma, é vivo de espírito e discreto como o
 
bom senso. Não há ninguém que não goste dele...
 
E como eu o ouvisse séria e calada, meu marido interrompeu-se e
 
perguntou-me:
 
- Fiz mal em trazê-lo aqui?
 
- Mal, por quê? perguntei eu.
 
- Por cousa nenhuma. Que mal havia de ser? É um homem distinto...
 
Pus termo ao novo louvor do rapaz, chamando um escravo para dar algumas
 
ordens.
 
E retirei-me ao meu quarto.
 
O sono dessa noite não foi o sono dos justos, podes crer. O que me irritava
 
era a preocupação constante em que eu andava depois destes
 
acontecimentos. Já eu não podia fugir inteiramente a essa preocupação: era
 
involuntária, subjugava-me, arrastava-me. Era a curiosidade do coração, esse
 
primeiro sinal das tempestades em que sucumbe a nossa vida e o nosso
 
futuro.
 
Parece que aquele homem lia na minha alma e sabia apresentar-se no
 
momento mais próprio a ocupar-me a imaginação como uma figura poética e
 
imponente. Tu, que o conheceste depois, dize-me se, dadas as circunstâncias
 
anteriores, não era para produzir esta impressão no espírito de uma mulher
 
como eu!
 
Como eu, repito. Minhas circunstâncias eram especiais; se não o soubeste
 
nunca, suspeitaste-o ao menos.
 
Se meu marido tivesse em mim uma mulher, e se eu tivesse nele um marido,
 
minha salvação era certa. Mas não era assim. Entramos no nosso lar nupcial
 
como dous viajantes estranhos em uma hospedaria, e aos quais a calamidade
 
do tempo e a hora avançada da noite obrigam a aceitar pousada sob o teto do
 
mesmo aposento.
 
Meu casamento foi resultado de um cálculo e de uma conveniência. Não
 
inculpo meus pais. Eles cuidavam fazer-me feliz e morreram na convicção
 
de que o era.
 
Eu podia, apesar de tudo, encontrar no marido que me davam um objeto de
 
felicidade para todos os meus dias. Bastava para isso que meu marido visse
 
em mim uma alma companheira da sua alma, um coração sócio do seu
 
coração. Não se dava isto; meu marido entendia o casamento ao modo da
 
maior parte da gente; via nele a obediência às palavras do Senhor no
 
Gênesis.
 
Fora disso, fazia-me cercar de certa consideração e dormia tranqüilo na
 
convicção de que havia cumprido o dever.
 
O dever! esta era a minha tábua de salvação. Eu sabia que as paixões não
 
eram soberanas e que a nossa vontade pode triunfar delas. A este respeito eu
 
tinha em mim forças bastantes para repelir idéias más. Mas não era o
 
presente que me abafava e atemorizava; era o futuro. Até então aquele
 
romance influía no meu espírito pela circunstância do mistério em que vinha
 
envolto; a realidade havia de abrir-me os olhos; consolava-me a esperança
 
de que eu triunfaria de um amor culpado. Mas, poderia nesse futuro, cuja
 
proximidade eu não calculava, resistir convenientemente à paixão e salvar
 
intactas a minha consideração e a minha consciência? Esta era a questão.
 
Ora, no meio destas oscilações, eu não via a mão do meu marido estender-se
 
para salvar-me. Pelo contrário, quando na ocasião de queimar a carta,
 
atirava-me a ele, lembras-te que ele me repeliu com uma palavra de enfado.
 
Isto pensei, isto senti, na longa noite que se seguiu à apresentação de Emílio.
 
No dia seguinte estava fatigada de espírito; mas, ou fosse calma ou fosse
 
prostração, senti que os pensamentos dolorosos que me haviam torturado
 
durante a noite esvaeceram-se à luz da manhã, como verdadeiras aves da
 
noite e da solidão.
 
Então abriu-se ao meu espírito um raio de luz. Era a repetição do mesmo
 
pensamento que me voltava no meio das preocupações daqueles últimos
 
dias.
 
Por que temer? dizia eu comigo. Sou uma triste medrosa; e fatigo-me em
 
criar montanhas para cair extenuada no meio da planície. Eia! nenhum
 
obstáculo se opõe ao meu caminho de mulher virtuosa e considerada. Este
 
homem, se é o mesmo, não passa de um mau leitor de romances realistas. O
 
mistério é que lhe dá algum valor; visto de mais perto há de ser vulgar ou
 
hediondo.
 
 
 
Capítulo IV
 
Não te quero fatigar com a narração minuciosa e diária de todos os
 
acontecimentos.
 
Emílio continuou a freqüentar a nossa casa, mostrando sempre a mesma
 
delicadeza e gravidade, e encantando a todos por suas maneiras distintas sem
 
afetação, amáveis sem fingimento.
 
Não sei por que meu marido revelava-se cada vez mais amigo de Emílio.
 
Este conseguira despertar nele um entusiasmo novo para mim e para todos.
 
Que capricho era esse da natureza?
 
Muitas vezes interroguei meu marido acerca desta amizade tão súbita e tão
 
estrepitosa; quis até inventar suspeitas no espírito dele; meu marido era
 
inabalável.
 
- Que queres? respondia-me ele. Não sei por que simpatizo
 
extraordinariamente com este rapaz. Sinto que é uma bela pessoa, e eu não
 
posso dissimular o entusiasmo de que me possuo quando estou perto dele.
 
- Mas sem conhecê-lo... objetava eu.
 
- Ora essa! Tenho as melhores informações; e demais, vê-se logo que é uma
 
pessoa distinta...
 
- As maneiras enganam muitas vezes.
 
- Conhece-se...
 
Confesso, minha amiga, que eu podia impor a meu marido o afastamento de
 
Emílio; mas quando esta idéia me vinha à cabeça, não sei por que ria-me dos
 
meus temores e declarava-me com forças de resistir a tudo o que pudesse
 
sobrevir.
 
Demais, o procedimento de Emílio autorizava-me a desarmar. Ele era para
 
mim de um respeito inalterável, tratava-me como a todas as outras, sem
 
deixar entrever a menor intenção oculta, o menor pensamento reservado.
 
Sucedeu o que era natural. Diante de tal procedimento não me ficava bem
 
proceder com rigor e responder com a indiferença à amabilidade.
 
As coisas marchavam de tal modo que eu cheguei a persuadir-me de que
 
tudo o que sucedera antes não tinha relação alguma com aquele rapaz, e que
 
não havia entre ambos mais do que um fenômeno da semelhança, o que aliás
 
eu não podia afirmar, porque, como te disse já, não pudera reparar bem no
 
homem do teatro.
 
Aconteceu que dentro de pouco tempo estávamos na maior intimidade, e eu
 
era para ele o mesmo que todas as outras: admiradora e admirada.
 
Das reuniões passou Emílio às simples visitas de dia, nas horas em que meu
 
marido estava presente, e mais tarde, mesmo quando ele se achava ausente.
 
Meu marido de ordinário era quem o trazia. Emílio vinha então no seu
 
carrinho que ele próprio dirigia, com a maior graça e elegância. Demorava-
 
se horas e horas em nossa casa, tocando piano ou conversando.
 
A primeira vez que o recebi só, confesso que estremeci; mas foi um susto
 
pueril; Emílio procedeu sempre do modo mais indiferente em relação às
 
minhas suspeitas. Nesse dia, se algumas me ficaram, desvaneceram-se todas.
 
Nisto passaram-se dous meses.
 
Um dia, era de tarde, eu estava só; esperava-te para irmos visitar teu pai
 
enfermo. Parou um carro à porta. Mandei ver. Era Emílio.
 
Recebi-o como de costume.
 
Disse-lhe que íamos visitar um doente, e ele quis logo sair. Disse-lhe que
 
ficasse até à tua chegada. Ficou como se outro motivo o detivesse além de
 
um dever de cortesia.
 
Passou-se meia hora.
 
Nossa conversa foi sobre assuntos indiferentes.
 
Em um dos intervalos da conversa Emílio levantou-se e foi à janela. Eu
 
levantei-me igualmente para ir ao piano buscar um leque. Voltando para o
 
sofá reparei pelo espelho que Emílio me olhava com um olhar estranho. Era
 
uma transfiguração. Parecia que naquele olhar estava concentrada toda a
 
alma dele.
 
Estremeci.
 
Todavia fiz um esforço sobre mim e fui sentar-me, então mais séria que
 
nunca.
 
Emílio encaminhou-se para mim.
 
Olhei para ele.
 
Era o mesmo olhar.
 
Baixei os meus olhos.
 
- Assustou-se? perguntou-me ele.
 
Não respondi nada. Mas comecei a tremer de novo e parecia-me que o
 
coração me queria pular fora do peito.
 
É que naquelas palavras havia a mesma expressão do olhar; as palavras
 
faziam-me o efeito das palavras da carta.
 
- Assustou-se? repetiu ele.
 
- De quê? perguntei eu procurando rir para não dar maior gravidade à
 
situação.
 
- Pareceu-me.
 
Houve um silêncio.
 
- D. Eugênia, disse ele sentando-se; não quero por mais tempo ocultar o
 
segredo que faz o tormento da minha vida. Fora um sacrifício inútil. Feliz ou
 
infeliz, prefiro a certeza da minha situação. D. Eugênia, eu amo-a.
 
Não te posso descrever como fiquei, ouvindo estas palavras. Senti que
 
empalidecia; minhas mãos estavam geladas. Quis falar: não pude.
 
Emílio continuou:
 
- Oh! eu bem sei a que me exponho. Vejo como este amor é culpado. Mas
 
que quer? É fatalidade. Andei tantas léguas, passei à ilharga de tantas
 
belezas, sem que o meu coração pulsasse. Estava-me reservada a ventura
 
rara ou o tremendo infortúnio de ser amado ou desprezado pela senhora.
 
Curvo-me ao destino. Qualquer que seja a resposta que eu possa obter, não
 
recuso, aceito. Que me responde?
 
Enquanto ele falava, eu podia, ouvindo-lhe as palavras, reunir algumas
 
idéias. Quando ele acabou levantei os olhos e disse:
 
- Que resposta espera de mim?
 
- Qualquer.
 
- Só pode esperar uma...
 
- Não me ama?
 
- Não! Nem posso e nem amo, nem amaria se pudesse ou quisesse... Peço
 
que se retire.
 
E levantei-me.
 
Emílio levantou-se.
 
- Retiro-me, disse ele; e parto com o inferno no coração.
 
Levantei os ombros em sinal de indiferença.
 
- Oh! eu bem sei que isso lhe é indiferente. É isso o que eu mais sinto. Eu
 
preferia o ódio; o ódio, sim; mas a indiferença, acredite, é o pior castigo.
 
Mas eu o recebo resignado. Tamanho crime deve ter tamanha pena.
 
E tomando o chapéu chegou-se a mim de novo.
 
Eu recuei dous passos.
 
- Oh! não tenha medo. Causo-lhe medo?
 
- Medo? retorqui eu com altivez.
 
- Asco? perguntou ele.
 
- Talvez... murmurei.
 
- Uma única resposta, tornou Emílio; conserva aquela carta?
 
- Ah! disse eu. Era o autor da carta?
 
- Era. E aquele misterioso do corredor do Teatro Lírico. Era eu. A carta?
 
- Queimei-a.
 
- Preveniu o meu pensamento.
 
E cumprimentando-me friamente dirigiu-se para a porta. Quase a chegar à
 
porta senti que ele vacilava e levava a mão ao peito.
 
Tive um momento de piedade. Mas era necessário que ele se fosse, quer
 
sofresse quer não. Todavia, dei um passo para ele e perguntei-lhe de longe:
 
- Quer dar-me uma resposta?
 
Ele parou e voltou-se.
 
- Pois não!
 
- Como é que para praticar o que praticou fingiu-se amigo de meu marido?
 
- Foi um ato indigno, eu sei; mas o meu amor é daqueles que não recuam
 
ante a indignidade. É o único que eu compreendo. Mas, perdão; não quero
 
enfadá-la mais. Adeus! Para sempre!
 
E saiu.
 
Pareceu-me ouvir um soluço.
 
Fui sentar-me ao sofá. Daí a pouco ouvi o rodar do carro.
 
O tempo que mediou entre a partida dele e a tua chegada não sei como se
 
passou. No lugar em que fiquei aí me achaste.
 
Até então eu não tinha visto o amor senão nos livros. Aquele homem
 
parecia-me realizar o amor que eu sonhara e vira descrito. A idéia de que o
 
coração de Emílio sangrava naquele momento, despertou em mim um
 
sentimento vivo de piedade. A piedade foi um primeiro passo.
 
"Quem sabe, dizia eu comigo mesma, o que ele está agora sofrendo? E que
 
culpa é a dele, afinal de contas? Ama-me, disse-mo; o amor foi mais forte do
 
que a razão; não viu que eu era sagrada para ele; revelou-se. Ama, é a sua
 
desculpa."
 
Depois repassava na memória todas as palavras dele e procurava recordar-
 
me do tom em que ele as proferira. Lembrava-me também do que eu dissera
 
e o tom com que respondera às suas confissões.
 
Fui talvez severa demais. Podia manter a minha dignidade sem abrir-lhe uma
 
chaga no coração. Se eu falasse com mais brandura podia adquirir dele o
 
respeito e a veneração. Agora há de amar-me ainda, mas não se recordará do
 
que se passou sem um sentimento de amargura.
 
Estava nestas reflexões quando entraste.
 
Lembras-te que me achaste triste e perguntaste a causa disso. Nada te
 
respondi. Fomos à casa da tua tia, sem que eu nada mudasse do ar que tinha
 
antes.
 
À noite quando meu marido me perguntou por Emílio, respondi sem saber o
 
que respondia:
 
- Não veio cá hoje.
 
- Deveras? disse ele. Então está doente.
 
- Não sei.
 
- Lá vou amanhã.
 
- Lá onde?
 
- À casa dele.
 
- Para quê?
 
- Talvez esteja doente.
 
- Não creio; esperemos até ver...
 
Passei uma noite angustiosa. A idéia de Emílio perturbava-me o sono.
 
Afigurava-se-me que ele estaria àquela hora chorando lágrimas de sangue no
 
desespero do amor não aceito.
 
Era piedade? Era amor?
 
Carlota, era uma e outra cousa. Que podia ser mais? Eu tinha posto o pé em
 
uma senda fatal; uma força me atraía. Eu fraca, podendo ser forte. Não me
 
inculpo senão a mim.
 
Até domingo.
 
 
 
Capítulo V
 
Na tarde seguinte, quando meu marido voltou perguntei por Emílio.
 
- Não o procurei, respondeu-me ele; tomei o conselho; se não vier hoje, sim.
 
Passou-se, pois, um dia sem ter notícias dele.
 
No dia seguinte, não tendo aparecido, meu marido foi lá.
 
Serei franca contigo, eu mesma lembrei isso a meu marido.
 
Esperei ansiosa a resposta.
 
Meu marido voltou pela tarde. Tinha um certo ar triste. Perguntei o que
 
havia.
 
- Não sei. Fui encontrar com o rapaz de cama. Disse-me que era uma ligeira
 
constipação; mas eu creio que não é isso só...
 
- Que será então? perguntei eu, fitando um olhar em meu marido.
 
- Alguma coisa mais. O rapaz falou-me em embarcar para o Norte. Está
 
triste, distraído, preocupado. Ao mesmo tempo que manifesta a esperança de
 
ver os pais, revela receios de não tornar a vê-los. Tem idéias de morrer na
 
viagem. Não sei que lhe aconteceu, mas foi alguma cousa. Talvez...
 
- Talvez?
 
- Talvez alguma perda de dinheiro.
 
Esta resposta transtornou o meu espírito. Posso afirmar-te que esta resposta
 
entrou por muito nos acontecimentos posteriores.
 
Depois de algum silêncio perguntei:
 
- Mas que pretendes fazer?
 
- Abrir-me com ele. Perguntar o que é, e acudir-lhe se for possível. Em
 
qualquer caso não o deixarei partir. Que achas?
 
- Acho que sim.
 
Tudo o que ia acontecendo contribuía poderosamente para tornar a idéia de
 
Emílio cada vez mais presente à minha memória, e, é com dor que o
 
confesso, não pensava já nele sem pulsações do coração.
 
Na noite do dia seguinte estávamos reunidas algumas pessoas. Eu não dava
 
grande vida à reunião. Estava triste e desconsolada. Estava com raiva de
 
mim própria. Fazia-me algoz de Emílio e doía-me a idéia de que ele
 
padecesse ainda mais por mim.
 
Mas, seriam nove horas, quando meu marido apareceu trazendo Emílio pelo
 
braço.
 
Houve um movimento geral de surpresa.
 
Realmente porque Emílio não aparecia alguns dias já todos começavam a
 
perguntar por ele; depois, porque o pobre moço vinha pálido de cera.
 
Não te direi o que se passou nessa noite. Emílio parecia sofrer, não estava
 
alegre como dantes; ao contrário, era naquela noite de uma taciturnidade, de
 
uma tristeza que incomodava a todos, mas que me mortificava atrozmente, a
 
mim que me fazia causa das suas dores.
 
Pude falar-lhe em uma ocasião, a alguma distância das outras pessoas.
 
- Desculpe-me, disse-lhe eu, se alguma palavra dura lhe disse. Compreende
 
a minha posição. Ouvindo bruscamente o que me disse não pude pensar no
 
que dizia. Sei que sofreu; peço-lhe que não sofra mais, que esqueça...
 
- Obrigado, murmurou ele.
 
- Meu marido falou-me de projetos seus...
 
- De voltar à minha província, é verdade.
 
- Mas doente...
 
- Esta doença há de passar.
 
E dizendo isto lançou-me um olhar tão sinistro que eu tive medo.
 
- Passar? passar como?
 
- De algum modo.
 
- Não diga isso...
 
- Que me resta mais na terra?
 
E voltou os olhos para enxugar uma lágrima.
 
- Que é isso? disse eu. Está chorando?
 
- As últimas lágrimas.
 
- Oh! se soubesse como me faz sofrer! Não chore; eu lho peço. Peço-lhe
 
mais. Peço-lhe que viva.
 
- Oh!
 
- Ordeno-lhe.
 
- Ordena-me? E se eu não obedecer? Se eu não puder?... Acredita que se
 
possa viver com um espinho no coração?
 
Isto que te escrevo é feio. A maneira por que ele falava é que era
 
apaixonada, dolorosa, comovente. Eu ouvia sem saber de mim.
 
Aproximavam-se algumas pessoas. Quis pôr termo à conversa e disse-lhe:
 
- Ama-me? disse eu. Só o amor pode ordenar? Pois é o amor que lhe ordena
 
que viva!
 
Emílio fez um gesto de alegria. Levantei-me para ir falar às pessoas que se
 
aproximavam.
 
- Obrigado, murmurou-me ele aos ouvidos.
 
Quando, no fim do serão, Emílio se despediu de mim, dizendo-me, com um
 
olhar em que a gratidão e o amor irradiavam juntos: - Até amanhã! - não sei
 
que sentimento de confusão e de amor, de remorso e de ternura se apoderou
 
de mim.
 
- Bem; Emílio está mais alegre, dizia-me meu marido.
 
Eu olhei para ele sem saber o que responder.
 
Depois retirei-me precipitadamente. Parecia-me que via nele a imagem da
 
minha consciência.
 
No dia seguinte recebi de Emílio esta carta:
 
Eugênia. Obrigado. Torno-me à vida, e à senhora o devo. Obrigado! fez de
 
um cadáver um homem, faça agora de um homem um deus. nimo! ânimo!
 
Li esta carta, reli, e... dir-to-ei, Carlota? beijei-a. Beijei-a repetidas vezes
 
com alma, com paixão, com delírio. Eu amava! eu amava!
 
Então houve em mim a mesma luta, mas estava mudada a situação dos meus
 
sentimentos. Antes era o coração que fugia à razão, agora a razão fugia ao
 
coração.
 
Era um crime, eu bem o via, bem o sentia; mas não sei qual era a minha
 
fatalidade, qual era a minha natureza; eu achava nas delícias do crime
 
desculpa ao meu erro, e procurava com isso legitimar a minha paixão.
 
Quando meu marido se achava perto de mim eu me sentia melhor e mais
 
corajosa...
 
Paro aqui desta vez. Sinto uma opressão no peito. É a recordação de todos
 
estes acontecimentos.
 
Até domingo.
 
 
 
Capítulo VI
 
Seguiram-se alguns dias às cenas que eu te contei na minha carta passada.
 
Ativou-se entre mim e Emílio uma correspondência. No fim de quinze dias
 
eu só vivia do pensamento dele.
 
Ninguém dos que freqüentavam a nossa casa, nem mesmo tu, pôde descobrir
 
este amor. Éramos dous namorados discretos ao último ponto.
 
É certo que muitas vezes me perguntavam por que é que eu me distraía tanto
 
e andava tão melancólica; isto chamava-me à vida real e eu mudava logo de
 
parecer.
 
Meu marido sobretudo parecia sofrer com as minhas tristezas.
 
A sua solicitude, confesso, incomodava-me. Muitas vezes lhe respondia mal,
 
não já porque eu o odiasse, mas porque de todos era ele o único a quem eu
 
não quisera ouvir destas interrogações.
 
Um dia voltando para casa à tarde chegou-se ele a mim e disse:
 
- Eugênia, tenho uma notícia a dar-te.
 
- Qual?
 
- E que te há de agradar muito.
 
- Vejamos qual é.
 
- É um passeio.
 
- Aonde?
 
- A idéia foi minha. Já fui ao Emílio e ele aplaudiu muito. O passeio deve ser
 
domingo à Gávea; iremos daqui muito cedinho. Tudo isto, é preciso notar,
 
não está decidido. Depende de ti. O que dizes?
 
- Aprovo a idéia.
 
- Muito bem. A Carlota pode ir.
 
- E deve ir, acrescentei eu; e algumas outras amigas.
 
Pouco depois recebias tu e outras um bilhete de convite para o passeio.
 
Lembras-te que lá fomos. O que não sabes é que nesse passeio, a favor da
 
confusão e a distração geral, houve entre mim e Emílio um diálogo que foi
 
para mim a primeira amargura de amor.
 
- Eugênia, dizia ele dando-me o braço, estás certa de que me amas?
 
- Estou.
 
- Pois bem. O que te peço, nem sou eu que te peço, é o meu coração, é o teu
 
coração que te pedem, um movimento nobre e capaz de nos engrandecer aos
 
nossos próprios olhos. Não haverá um recanto no mundo em que possamos
 
viver, longe de todos e perto do céu?
 
- Fugir?
 
- Sim!
 
- Oh! isso nunca!
 
- Não me amas.
 
- Amo, sim; é já um crime, não quero ir além.
 
- Recusas a felicidade?
 
- Recuso a desonra.
 
- Não me amas.
 
- Oh! meu Deus, como respondê-lo? Amo, sim; mas desejo ficar a seus
 
olhos a mesma mulher, amorosa é verdade, mas até certo ponto... pura.
 
- O amor que calcula, não é amor.
 
Não respondi. Emílio disse estas palavras com uma expressão tal de desdém
 
e com uma intenção de ferir-me que eu senti o coração bater-me apressado, e
 
subir-me o sangue ao rosto.
 
O passeio acabou mal.
 
Esta cena tornou Emílio frio para mim; eu sofria com isso; procurei torná-lo
 
ao estado anterior; mas não consegui.
 
Um dia em que nos achávamos a sós, disse-lhe:
 
- Emílio, se eu amanhã te acompanhasse, o que farias?
 
- Cumpria essa ordem divina.
 
- Mas depois?
 
- Depois? perguntou Emílio com ar de quem estranhava a pergunta.
 
- Sim, depois? continuei eu. Depois quando o tempo volvesse não me havias
 
de olhar com desprezo?
 
- Desprezo? Não vejo...
 
- Como não? Que te mereceria eu depois?
 
- Oh! esse sacrifício seria feito por minha causa, eu fora covarde se te
 
lançasse isso em rosto.
 
- Di-lo-ias no teu íntimo.
 
- Juro que não.
 
- Pois a meus olhos é assim; eu nunca me perdoaria esse erro.
 
Emílio pôs o rosto nas mãos e pareceu chorar. Eu que até ali falava com
 
esforço, fui a ele e tirei-lhe o rosto das mãos.
 
- Que é isto? disse eu. Não vês que me fazes chorar também?
 
Ele olhou para mim com os olhos rasos de lágrimas. Eu tinha os meus
 
úmidos.
 
- Adeus, disse ele repentinamente. Vou partir.
 
E deu um passo para a porta.
 
- Se me prometes viver, disse-lhe, parte; se tens alguma idéia sinistra, fica.
 
Não sei o que viu ele no meu olhar, mas tomando a mão que eu lhe estendia
 
beijou-a repetidas vezes (eram os primeiros beijos) e disse-me com fogo:
 
- Fico, Eugênia!
 
Ouvimos um ruído fora. Mandei ver. Era meu marido que chegava enfermo.
 
Tinha tido um ataque no escritório. Tornara a si, mas achava-se mal. Alguns
 
amigos o trouxeram dentro de um carro.
 
Corri para a porta. Meu marido vinha pálido e desfeito. Mal podia andar
 
ajudado pelos amigos.
 
Fiquei desesperada, não cuidei de mais cousa alguma. O médico que
 
acompanhara meu marido mandou logo fazer algumas aplicações de
 
remédios. Eu estava impaciente; perguntava a todos se meu marido estava
 
salvo.
 
Todos me tranqüilizavam.
 
Emílio mostrou-se pesaroso com o acontecimento. Foi a meu marido e
 
apertou-lhe a mão.
 
Quando Emílio quis sair, meu marido disse-lhe:
 
- Olhe, sei que não pode estar aqui sempre; peço-lhe, porém, que venha, se
 
puder, todos os dias.
 
- Pois não, disse Emílio.
 
E saiu.
 
Meu marido passou mal o resto daquele dia e a noite. Eu não dormi. Passei a
 
noite no quarto.
 
No dia seguinte estava exausta. Tantas comoções diversas e uma vigília tão
 
longa deixaram-me prostrada: cedia à força maior. Mandei chamar a prima
 
Elvira e fui deitar-me.
 
Fecho esta carta neste ponto. Pouco falta para chegar ao termo da minha
 
triste narração.
 
Até domingo.
 
 
 
Capítulo VII
 
A moléstia de meu marido durou poucos dias. De dia para dia agravava-se.
 
No fim de oito dias os médicos desenganaram o doente.
 
Quando recebi esta fatal nova fiquei como louca. Era meu marido, Carlota, e
 
apesar de tudo eu não podia esquecer que ele tinha sido companheiro da
 
minha vida e a idéia salvadora nos desvios do meu espírito.
 
Emílio achou-me num estado de desespero. Procurou consolar-me. Eu não
 
lhe ocultei que esta morte era um golpe profundo para mim.
 
Uma noite estávamos juntos todos, eu, a prima Elvira, uma parenta de meu
 
marido e Emílio. Fazíamos companhia ao doente. Este, depois de um longo
 
silêncio, voltou-se para mim e disse-me:
 
- A tua mão.
 
E apertando-me a mão com uma energia suprema, voltou-se para a parede.
 
Expirou.
 
...........................................................................................................................
 
.................
 
Passaram-se quatro meses depois dos fatos que te contei. Emílio
 
acompanhou-me na dor e foi dos mais assíduos em todas as cerimônias
 
fúnebres que se fizeram ao meu finado marido.
 
Todavia, as visitas começaram a escassear. Era, parecia-me, por motivo de
 
uma delicadeza natural.
 
No fim do prazo de que te falei, soube, por boca de um dos amigos de meu
 
marido, que Emílio ia partir. Não pude crer. Escrevi-lhe uma carta.
 
Eu amava-o então, como dantes, mais ainda agora que estava livre.
 
Dizia a carta:
 
Emílio.
 
Constou-me que ias partir. Será possível? Eu mesma não posso acreditar nos meus ouvidos!
 
Bem sabes se eu te amo. Não é tempo de coroar os nossos votos; mas não faltará muito para que o mundo nos revele uma união que o amor nos impõe. Vem tu mesmo responder-me
 
por boca.
 
Tua Eugênia.
 
Emílio veio em pessoa. Asseverou-me que, se ia partir, era por negócio de
 
pouco tempo, mas que voltaria logo. A viagem devia ter lugar daí a oito
 
dias.
 
Pedi-lhe que jurasse o que dizia, e ele jurou.
 
Deixei-o partir.
 
Daí a quatro dias recebia eu a seguinte carta dele:
 
Menti, Eugênia; vou partir já. Menti ainda, eu não volto. Não volto porque não posso. Uma união contigo seria para mim o ideal da felicidade se eu não fosse homem de hábitos opostos ao casamento. Adeus. Desculpa-me, e reza para que eu faça boa viagem. Adeus.
 
Emílio.
 
Avalias facilmente como fiquei depois de ler esta carta. Era um castelo que
 
se desmoronava. Em troca do meu amor, do meu primeiro amor, recebia
 
deste modo a ingratidão e o desprezo. Era justo: aquele amor culpado não
 
podia ter bom fim; eu fui castigada pelas conseqüências mesmo do meu
 
crime.
 
Mas, perguntava eu, como é que este homem, que parecia amar-me tanto,
 
recusou aquela de cuja honestidade podia estar certo, visto que pôde opor
 
uma resistência aos desejos de seu coração? Isto me pareceu um mistério.
 
Hoje vejo que não era; Emílio era um sedutor vulgar e só se diferençava dos
 
outros em ter um pouco mais de habilidade que eles.
 
Tal é a minha história. Imagina o que sofri nestes dous anos. Mas o tempo é
 
um grande médico: estou curada.
 
O amor ofendido e o remorso de haver de algum modo traído a confiança de
 
meu esposo fizeram-me doer muito. Mas eu creio que caro paguei o meu
 
crime e acho-me reabilitada perante a minha consciência.
 
Achar-me-ei perante Deus?
 
E tu? É o que me hás de explicar amanhã; vinte e quatro horas depois de
 
partir esta carta eu serei contigo.
 
Adeus!
 
 
 
 
 
FIM